Um dos quatro grupos responsáveis pela coleta de material reciclável em Maceió, a Cooperativa dos Trabalhadores da Vila Emater (Coopvila) foi fundada em 2008, mas passou a funcionar com mais afinco após o fechamento do lixão da capital, em 2010. Dona Eliene, atual presidente da Coopvila, lembra que as condições de trabalho e de convívio naquele lugar não eram fáceis.
“Ali”, disse, apontando para o morro onde o lixão costumava funcionar, por trás da cooperativa, “não tinha uniforme. Não tinha horário certo para trabalhar. A comida era encontrada lá também. Às vezes, as pessoas até ‘tiravam sangue’ de outras por causa de alimento e de material”, relatou.
Ela também destaca o preconceito sofrido pelos catadores individuais. “Quando carregavam o carrinho nas costas, eram chamados de ‘burros sem rabo’. Ser discriminado dói muito. A gente era considerado animal”.
Tanto o plano estadual quanto o plano nacional de resíduos sólidos ditam metas para a eliminação e recuperação de lixões, aliados à inclusão social e à emancipação econômica de catadores, que retiram seu sustento da recolha dos resíduos sólidos recicláveis e reutilizáveis, promovendo a reciclagem e permitindo o retorno desses materiais à cadeia produtiva.
A extinção do lixão rendeu até um documentário. Dirigido por Marcelo Pedroso, “O lixão sai, a gente fica” foi filmado entre abril e junho de 2010 e apresenta a situação dos catadores de materiais recicláveis da Vila Emater após o fechamento do lixão pela prefeitura. O fortalecimento da cooperativa, a luta pela implantação da coleta seletiva e a resistência pelo direito à moradia faziam parte do horizonte desses trabalhadores num momento em que precisavam reconstruir suas referências e suas vidas.
Ivanilda Gomes, mais conhecida como Vânia, que integra a Coopvila, explica que a cooperativa foi uma saída para os catadores que trabalhavam no antigo lixão da capital alagoana, em grande parte porque a maioria dos catadores são analfabetos ou possuem baixo grau de escolaridade. “A única maneira de sustentar a família seria se organizar na atividade que já desempenhavam”, disse.
Agora, Dona Eliene trabalha uniformizada, em horários definidos e em um ambiente muito mais seguro. “É outra vida”, resume. Ao mesmo tempo, ela destaca que a transição do lixão para a cooperativa não foi fácil.
“Na cooperativa, todo o ganho é dividido entre os sócios de maneira igual. Mas, eu, sozinha, ganhava entre R$120 e R$160 reais por semana no lixão. Ao chegar na cooperativa, eram necessários três meses para receber R$20. Quem queria? Era fácil desistir se não tivesse o pensamento de que a luta iria dar certo”, admitiu.
Para Vânia, é difícil mudar a mentalidade do catador que trabalha sozinho. “Convencê-lo de que, se nos organizarmos, a gente vai entrar pela porta da frente da sociedade, é o desafio”, avaliou. Ao mesmo tempo, ela acrescenta que a desvalorização da categoria, que existe mesmo quando os trabalhadores estão organizados em cooperativas, se intensifica quando o catador trabalha no lixão.
“Se transforma em preconceito. Às vezes, as pessoas vêem os catadores como coitados. ‘Dá um carrinho de mão a ele, uma comida, e já tá bom’. Não é assim. Nós somos profissionais, como em qualquer outra profissão”, completou.
O cooperativismo solidário como saída no trabalho e na comunidade
De todas as mudanças mencionadas por Vânia e Dona Eliene, o que mais emociona as cooperadas é falar com orgulho do companheirismo, união e solidariedade construídos ao longo da história da Coopvila.
“A partir do momento em que estamos em uma cooperativa, nós nos permitimos mudar nossos hábitos e aprender. E esse aprendizado vale para o empreendimento e para nosso crescimento pessoal”, salientou Dona Eliene.
Vânia é enfática ao afirmar que a Coopvila, ao longo de suas gestões, têm adotado o cooperativismo solidário. “Independente de qualquer coisa, a gente ajuda o outro, não só dentro da cooperativa, mas lá fora também”, destacou. “Ter o prazer de poder voltar a estudar, das pessoas se interessarem pelo seu trabalho, de melhorar como ser humano. Não tem dinheiro que pague”, finalizou, emocionada.
Vânia, que concorreu à prefeitura de Maceió em 2020 como vice na chapa com a jornalista Lenilda Luna, também destacou que é a Coopvila que rotineiramente representa a categoria dos catadores e é “a única que ocupa os espaços políticos”. Para ela, um posicionamento mais enfático da categoria nesses espaços é fundamental para a valorização dos trabalhadores.
Os valores praticados na Coopvila se estendem aos moradores da Vila Emater 2 – que dá nome à cooperativa -, onde vive a maioria dos cooperados. “Cerca de 80% dos moradores da comunidade são catadores de materiais recicláveis. Se não estão organizados na cooperativa, estão catando na rua. Lá não temos nenhum direito básico. Não temos posto de saúde, não temos acesso a educação, nada. Mas ninguém passou necessidade durante a pandemia porque contamos com apoio solidário”, ressaltou Vânia.
A união, a autogestão e a forma de organização horizontal, que fazem parte da rotina dos catadores que integram a Coopvila, se estendendo à comunidade, são típicas e fundamentais características de empreendimentos em economia solidária.
De acordo com a economista e professora da Universidade Federal de Alagoas, Ana Milani, a economia solidária é uma forma diferente de observar e fazer economia, possuindo diferentes conceitos que se opõem à lógica estabelecida de mercado capitalista.
Milani explica que a economia solidária também se apresenta como uma questão de luta e de resistência de muitos trabalhadores que não conseguem se inserir no mercado de trabalho competitivo, sendo uma forma de superação da situação de desemprego.
“Essas pessoas reproduzem sua vida através do trabalho”, destacou. “Se chama economia solidária porque esse sistema torna possível enxergar a possibilidade de uma outra sociedade na qual princípios como a solidariedade e o olhar mais voltado para o próximo sejam fatores a serem considerados no processo de produção”.
Para Milani, embora ainda seja difícil de se pensar a economia solidária como hegemônica, os processos de gestão e de produção nela praticados podem embasar uma transformação social na região na qual se encontra.
“Quando se organizam, o trabalho deles muda. Embora a renda não seja muita, a condição desses trabalhadores passa a ser diferente. Eles concluem que é muito melhor fazer juntos do que sozinhos”, finalizou a economista.
Reivindicações e perspectivas
Para o futuro, Vânia deseja que a lei de resíduos sólidos seja cumprida em todo o país e que as políticas públicas voltadas para os catadores de material reciclável sejam mais inclusivas.
“Alagoas é um dos estados mais parabenizados por não existir mais lixão. Mas, por trás disso, existem vários companheiros que não estão organizados, que ainda passam fome, que passam por dificuldades. Então, não é só fechar o lixão. Existem políticas de inclusão, mas quem está no poder, exclui”, criticou.
Para ela, o caminho para um maior reconhecimento e valorização dos catadores é a participação ativa desses trabalhadores na construção dos projetos voltados para a categoria. “Que os catadores sejam protagonistas dessas políticas públicas!”.
A nível pessoal, Vânia pretende começar a faculdade de Gestão Ambiental ainda em 2022, mas se engana quem pensa que ela planeja deixar a Coopvila. “Quero continuar trabalhando aqui mesmo depois que me formar. Algumas pessoas novas chegam, aproveitam o conhecimento e saem. Não tenho essa visão”, garantiu.
“Quero servir de exemplo, principalmente para as mulheres periféricas, pobres e pretas, para que elas não desistam dos seus sonhos e para que recebam o apoio que eu recebi”, finalizou.
O legado que Dona Eliene – catadora, mãe e atriz – quer deixar é claro: que as gerações futuras reconheçam a luta dos trabalhadores da Coopvila. “E, se nossos filhos e netos um dia precisarem, que possam dispor desse espaço também”, disse. “E trabalhar para que nunca mais haja lixão”, completou, enfática. “E nem incineradores”, lembrou Vânia.